O que você é? Complete aqui com uma profissão. Complete aqui com o nome da sua graduação. Complete aqui com a frustração/vergonha/orgulho/alívio de ter/não ter seguido a carreira para qual você prestou vestibular. Eu sou… grata por conseguir pagar meu aluguel. Complete aqui com a fonte de renda que te permite morar, vestir, comer e se divertir.
Engraçado como a gente precisa ficar se lembrando do valor da nossa trajetória e das nossas escolhas, como se não existissem muito mais exceções do que regras. Eu sei, tem pessoas que dominam melhor os protocolos, as tradições, e isso também é valor.
Eu sou…alguém que adora ouvir música, viajar, conversar e comer. Gosto da lealdade das pessoas e também gosto de dançar e de ouvir idiomas diferentes. Eu gosto de tecnologia mas também gosto muito de coisas antigas, gosto de roupas e sapatos e acessórios. Eu gosto de filosofar e pensar na vida. Eu gosto de abraços e gosto de cafuné. Isso precisava vir antes no meu currículo: gosta de conversar e de viajar.
Eu sou alguém que gosta de viajar e de música, e isso deveria ser a primeira coisa no meu currículo. Eu me formei em Letras. Nas fichas de hotel, eu escrevo: professora.
Me formei em Letras. Isso combina com conversar e viajar. Check. Tem a ver. Parece a decisão correta.
Estudei muitos anos num colégio tradicional de BH, onde nunca me contaram sobre o curso de Letras. Colégio apertado, bom pra passar no Vestibular. Falava-se muito sobre cursos grandes como Medicina, Direito e Engenharia. Talento para essas coisas tradicionais, isso também é valor. Então falhei miseravelmente apesar de uma inesgotável sequência de aulas de reforço e lá veio a bomba na 8a série. Eu preferia passar meus dias estudando flamenco que matemática. Graças ao aparente fracasso, mudei de escola e de repente eu era uma das melhores da turma, justamente em Matemática. Não, não é pra isso que serve uma bomba.
No novo colégio, tive pela primeira vez aulas de Literatura e elas me abriram um mundo onde finalmente tinha lugar pra mim. Nas aulas estudávamos história, artes, sociedade, música, e como isso chegava ao Brasil em forma de poesia e prosa. “O que eu preciso fazer pra ser como você?”, perguntei aos 17 anos pro professor Aerton. “Letras”, ele disse. Decidi então que seria professora de Literatura Brasileira.
Lá em 1999, quando eu já tinha alguns anos de experiência em canto, teatro e dança, abriram o vestibular pra Artes Cênicas na UFMG. Era exatamente o ano em que eu escolheria que graduação seguir. Não existia até então o curso de teatro – era ir pra São Paulo ou pro Rio e bancar uma faculdade fora, o que estava fora de cogitação pelo meu contexto da época. Por motivos de “preciso fazer algo que dê trabalho e dinheiro”, escolhi Letras. Depois de formada, fiz um novo vestibular e finalmente comecei a cursar Artes Cênicas…que larguei ao final do primeiro ano. Aos 24 anos,com uma carga horária de aulas impossível de cumprir sem patrocínio, eu precisava trabalhar, me dedicar ao inglês que já pagava minhas contas. Quando falo isso nas capacitações de professores, muitos dão risada: “você decidiu ser professora pelo dinheiro?”. Bom, aparentemente eu só gosto e sei fazer coisas que não dão dinheiro.
A arte então ocupou seu cantinho: ela estaria presente na minha vida sem a obrigação de pagar minhas contas. Decidi não impor a ela esse imperativo, afinal.
Recentemente, sendo speaker e tradutora intérprete na Quadrienal de Praga, fui tomada por uma crise existencial transatlântica: “nossa…tantas pessoas ali utilizando o inglês como ferramenta para grandes projetos, todo mundo com mestrado e/ou doutorado e eu só…ensino inglês.” Exatamente. Eu fui capaz de pensar esse absurdo. Contando para minha analista, ela irrompeu num ataque de riso. Esse pensamento inútil inundou minha cabeça e verteu lágrimas de desconsolo numa bela tarde de sol.
Então pensei: é a estrada não percorrida. É o caminho que não trilhei. É a faculdade de Teatro que não terminei, o mestrado que não fiz. É tudo aquilo que, de uma certa perspectiva, parece mais brilhante, mais interessante, mais oficial, mais atraente, mais verde…até entender quanto de vida estamos dispostas a dar em troca. São escolhas: uma, tão legítima quanto a outra. “The road not taken”, de Robert Frost. Vale a leitura.
Só que eu também não imaginava um dia ser speaker e intérprete na Quadrienal de Praga. Um evento internacional gigantesco discutindo cenografia, figurino e as artes da cena pelo mundo, e o que me levou até lá foi exatamente ter seguido com as artes e ter me desenvolvido no inglês e na educação.
Por um tempo eu achei que a arte não se misturaria com minha persona-professora. Houve um tempo em que eu queria muito ser educadora e não entertainer, como se uma coisa invalidasse a outra. Mas a gente não consegue esconder uma paixão por muito tempo. O olho brilha, o corpo treme, a voz se projeta e a gente transparece o que realmente é: uma mistura de tudo que faz a gente vibrar.
A questão é que eu gosto MUITO do que eu faço. E acho que faço bem, vejam bem. Graças aos deuses e à internet, existem muitas formas de viver com trabalhos pouco ortodoxos. Afinal, já concordamos que há mais exceções do que regras nesse mundo, e isso também é valor.
Carol Romano, Julho de 2023.